#entrevista - Aira Bonfim/Museu do Futebol: "Foram anos de construção de uma ideia equivocada que o esporte não pertencia ao universo feminino" #JogaPraElas

Qual a participação das mulheres no esporte mais popular do Brasil? O que sabemos sobre a história do futebol feminino? Em maio deste ano, o Museu do Futebol abriu uma exposição permanente chamada Visibilidade para o Futebol Feminino, para responder essas perguntas e contar décadas de uma história muitas vezes esquecida. A pesquisadora do Museu do Futebol Aira Bonfim nos conta muito sobre a história do futebol feminino no Brasil e como ela influenciou e influencia até hoje os rumos da modalidade. Aira participou da implantação do Centro de Referência do Futebol em 2011 e tem uma história familiar com o futebol, herdada do avô goleiro, que despertou a curiosidade em praticar o esporte. 

O que a história brasileira tem para nos dizer sobre o futebol feminino? Quais são os marcos (altos e baixos) da modalidade no Brasil?

Desde a chegada do futebol no Brasil, no início do século XX, a mulher brasileira da elite se viu em pouco tempo envolvida pelo cenário que rondava esse esporte: torcendo, convivendo nos espaços sociais-esportivos e até escrevendo sobre o assunto. Nos anos seguintes, período em que essa prática se popularizou, as moças que residiam nas periferias do Rio de Janeiro não hesitaram em aprender as regras do jogo e começaram a criar amistosos pela cidade. Na década de 1930, já existiam dezenas de equipes femininas jogando, inclusive o E. C. Brasileiro e o Casino Realengo F. C. participaram da partida inaugural da iluminação do campo do estádio do Pacaembu em 1940. Apesar do encorajamento da formação de equipes femininas, em 1941, o decreto de lei do Estado Novo noticia que “(...) às mulheres não caberá a prática de desportos incompatíveis comas condições de sua natureza” e o processo de empoderamento das mulheres através do esporte foi consideravelmente comprometido. Além da estrutura social machista, falta de estruturas de competição e formação, as atletas passaram quase 40 anos ludibriando as formas de repressão que atingiam a modalidade e lutando contra as proibições da CND (Conselho Nacional de Desportos). Foram anos de construção de uma ideia completamente equivocada na qual o esporte não pertencia ao universo feminino; que o corpo da mulher não está apto para jogar ou mesmo comentar sobre o tema. Apenas em 1983 a lei foi revogada, mas nem por isso a conjuntura se mostrava otimista para as atletas da década de 1980: as ligas femininas eram clandestinas até aquele momento, o cenário permanecia machista, a formação de base, clubes e os campeonatos quase não existiam. A primeira seleção brasileira a representar a nação foi reunida apenas em 1988, e o primeiro Mundial oficial disputado em 1991.   


Como essa trajetória do esporte influenciou o cenário atual do futebol feminino?

O desconhecimento da história da modalidade contribui com a manutenção dos discursos obsoletos e preconceituosos que se esforçam em distanciar as mulheres do futebol. Ainda nos dias de hoje as jogadoras tem que justificar a sua feminilidade para serem aceitas e respeitadas nesse cenário. A mídia passou anos valorizando os atributos de uma “beleza” física como uma condição para qualificar essas atletas. Imagine uma partida de futebol masculino em que narradoras conferissem elogios a um ou outro jogador por serem bonitos? É tão fantasioso como constrangedor. O cenário atual também não conta com uma formação de base que estimule qualquer menina desde cedo a jogar não só futebol, mas experimentar todos os esportes possíveis. A consequência desse vácuo na formação das atletas é sentida com muito peso quando essa garota decide levar o futebol mais a sério. A possibilidade de se profissionalizar esbarra em variados obstáculos que poderiam ter sido sanados durante a formação. Países como a França iniciam meninas desde os 4 anos no futebol, enquanto que o Brasil se pena para organizar um campeonato Sub 15. O calendário esportivo e os clubes que resolveram apostar na modalidade ainda encontram um contexto frágil e aquém dos quadros internacionais. Ainda assim, somos campeãs do Mundial de Clubes pelo São José dos Campos mesmo sem quase ninguém saber e valorizar.

Por que é importante fazer o resgate histórico da modalidade no Brasil? 
 
O resgate histórico nos permite compreender a nossa própria história. Durante a pesquisa, encontramos raríssimas pessoas que tinham conhecimento dos tantos anos de proibição da modalidade no Brasil, inclusive as atletas da seleção brasileira. Essa falta de conhecimento só atrapalha a luta e o exercício de desconstrução de que as mulheres também são feitas para os esportes – e como o são! O exercício também nos provocou a reavaliar todo o conteúdo exposto no Museu do Futebol e a não mais legitimar o discurso de exclusão das mulheres no futebol. A história é feitas de fatos narrados e outros deixados de lado. A responsabilidade de uma instituição museológica é muito grande nesse sentido: se não escolhemos não contar é quase como se não tivesse existido. Pensar que grupos das mais variadas idades, crianças e ex-atletas, possam se reconhecer através do percurso expositivo, nos gera uma satisfação e além de gerar sentido para as pesquisas e projetos futuros.  
 
A história do futebol feminino no nosso país, considerado popularmente o "País do Futebol", é muito diferente da história da modalidade em outros locais do mundo? Por quê?
 
A história do futebol feminino não é exatamente muito diferente a de outros países. A Inglaterra, por exemplo, precursora no desenvolvimento do futebol, chegou a ter estádios com mais de 45 mil torcedores acompanhando equipes femininas como o The Dick, Kerr Ladies FC durante o período da I Guerra Mundial. Ainda assim a proibição se estabeleceu por lá, assim como em outros países vizinhos. O futebol foi um esporte de afirmação de masculinidade na maioria dos países onde se popularizou. O legado das mulheres do século XXI é continuar descontruindo o ideal social hegemônico do que é ser mulher. Nesse sentido, a afirmação de que “o Brasil é o país do Futebol” nos causa um certo incômodo uma vez que ela omite todo o processo de exclusão das mulheres no âmbito da prática e da sociabilidade trazida por esse mesmo esporte.

“Foram anos de construção de uma ideia completamente equivocada na qual o esporte não pertencia ao universo feminino”

O que é preciso ser feito/contado para que o futebol feminino tenha mais espaço e as meninas e mulheres que praticam e gostam do esporte se sintam mais representadas?
 
É uma luta de minorias. Dá trabalho mas já está acontecendo desde sempre. Quando nos colocamos para assistir aos jogos, ler e compartilhar links sobre o tema nas redes sociais, já estamos levantando a bandeira. No âmbito profissional, acredito que as jogadoras procurem apenas um cenário de dignidade e não de igualdade da estrutura milionária surreal estabelecida no masculino. Pensar que a maior parte dessas jogadoras da seleção brasileira sequer tem suas carteiras de trabalho registradas, e depois de quinze anos de atuação são obrigadas a começar do zero para conseguirem pagar suas contas é algo impensável, e ao mesmo tempo é muito comum de ser ouvir nos depoimentos.   
 Da parte que cabe a instituição que represento, o Museu do Futebol, além de inaugurarmos a exposição Visibilidade Para O Futebol Feminino que incorporará a história da modalidade no discurso curatorial da exposição de longa duração, realizamos debates e ações educativas desde o início do ano para conhecermos, pensarmos e aprofundarmos o tema. Através do nosso Centro de Referência do Futebol Brasileiro, já podemos nos orgulhar de termos reunido e mapeado a maior coleção de referências sobre a modalidade no país. São dissertações, pesquisas e raras publicações somados aos acervos pessoais e institucionais que nos ajudaram muito a começar a entender essa história.
 Um dado importantíssimo que surgiu durante a pesquisa foi a ausência de fontes e registros disponíveis que nos auxiliariam no estudo da modalidade não só no Brasil, como no mundo. Dessa forma, começamos uma campanha nunca antes feita no museu de digitalização das coleções pessoais das jogadoras, árbitras e jornalistas para conseguirmos encontrar os acervos que disponibilizaríamos na exposição e que dessem conta da historia de pioneirismo e atuação das mulheres no futebol. Também começamos a recolher depoimento audiovisual das jogadoras da seleção brasileira para compor no acervo da instituição, além de uma força tarefa de catalogação de grande parte desse conteúdo para disponibilizar o quanto antes todo esse conteúdo de pesquisa para os consulentes do nosso banco de dados online (dados.museudofutebol.org.br)
 Ainda há muito por fazer e pesquisar, mas posso garantir que diariamente saem visitantes todos os dias do museu que se somam aos espectadores que torcem por essas mulheres na Copa do Mundo do Canadá. Eu mesma já me peguei pensando “Porque não escolhi ser jogadora de futebol?”. Fica pra próxima!


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